Por que as crianças estão cada vez mais infelizes?
Uma em cada onze crianças com  mais de oito anos de idade está infeliz,  segundo um estudo divulgado em  janeiro deste ano pela Children’s  Society, organização centenária de  proteção infantil. Apesar de a  pesquisa trazer à tona uma realidade das  crianças entre 8 e 16 anos do  Reino Unido, especialistas brasileiros  em saúde infantil afirmam que  esse não é um problema exclusivo das  crianças britânicas. No Brasil, a  realidade é parecida. Ana Maria  Escobar, pediatra do Instituto da  Criança do Hospital das Clínicas, em  São Paulo, conduziu uma pesquisa  com os pais de cerca de 900 crianças  de 5 a 9 anos que estudavam em  escolas particulares e estaduais.
 
   De acordo com os resultados do estudo, os pais disseram que 22,7% das   crianças apresentavam ansiedade; 25,9% tinham problemas de atenção e   21,7% problemas de comportamento. "No início do estudo, esperava   encontrar queixas como asma, mas não ansiedade", diz Ana. Apenas 8%   tinham problemas respiratórios e 6,9% eram portadoras de asma. O estudo   foi concluído em 2005, mas Ana Maria acredita que se a pesquisa fosse   feita hoje, "os níveis de ansiedade e de problemas de comportamento   certamente seriam ainda mais altos."
 
   Mais do que infelizes, as crianças brasileiras também estão ansiosas,   estressadas, deprimidas e sobrecarregadas. "Elas estão desconfortáveis   com a infância. Esse desconforto aparece de várias formas: como   irritabilidade, desatenção, tristeza e falta de ânimo. Muitas vezes, é   um comportamento incomum em relação à idade delas", diz Ivete Gattás,   coordenadora da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência da   Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
 
   Saul Cypel, membro do departamento de Pediatria do Comportamento e   Desenvolvimento da Sociedade Brasileira de Pediatria, traz dados   preocupantes: "A impressão que eu tenho é a de que o número de crianças   com queixas comportamentais cresceu muito nesses últimos dez anos."   Neste período, segundo Cypel, houve uma transformação do perfil da   clínica: se antes as queixas sobre o comportamento infantil   correspondiam a 20% dos pacientes, agora são responsáveis por 85% do   total de seu consultório de neurologia.
 
   Com uma agenda recheada de atividades extracurriculares, que vão desde   aulas de idiomas como inglês e mandarim até as aulas clássicas como  balé  e futebol, as crianças estão sem tempo para se divertir e  descansar,  acreditam os médicos. Segundo Cypel, a antecipação de  atividades para as  quais o indivíduo não está preparado pode  desencadear o stress tóxico,  que ocorre quando há uma estimulação  constante do sistema de resposta ao  stress (
veja quadro abaixo)
, trazendo prejuízos futuros para as crianças.
 
   "A família introduz uma série de treinamentos, atividades e línguas   novas. Na medida em que a criança não consegue dar conta disso, a   sensação de fracasso se torna frequente", explica Cypel. "Com o stress   tóxico, ao invés de favorecer o desenvolvimento da criança, os pais   acabam limitando-a e desmotivando-a." Entre as consequências diretas   estão a diminuição da autoestima, alterações alimentares (excesso ou   falta de apetite), problemas de sono e apatia.
No início deste ano, a Academia Americana de Pediatria lançou um   documento que chama a atenção para as evidências de impactos negativos   do stress tóxico, com prejuízos posteriores para a aprendizagem,   comportamento, desenvolvimento físico e mental. O relatório também   sugere que parte dos problemas mentais que ocorrem nos adultos devem ser   vistas como transtornos de desenvolvimento que tiveram início na   infância.
 
   Ana Maria Escobar acrescenta que a exposição à realidade violenta do   Brasil também pode contribuir para uma sensação de ansiedade nas   crianças. "Antes, raramente uma criança ouvia falar de um ato de   violência. Hoje, elas ficam mais confinadas e têm medo de assaltos e   sequestros. Isso com certeza provoca maior stress e ansiedade, além de   maior possibilidade de se sentir infeliz, principalmente entre aquelas   que vivem nas grandes cidades brasileiras", diz..
 
   
     
   
Sinais —  O problema é agravado pelo fato de que muitos  pais demoram a perceber o  que se passa com seus filhos. "Eles acham que  o comportamento das  crianças é normal", diz Ana Maria Escobar. Além  disso, a dificuldade em  administrar o tempo que dedicam à vida  profissional e aos filhos  muitas vezes impede que os pais percebam os  sinais de que algo está  errado. "Muitos pais priorizam a profissão e terceirizam a criação dos  filhos.  Mas é preciso se questionar: quanto tempo eu passo com meus  filhos? Quem  são as pessoas que estão criando eles?", afirma o  psiquiatra Francisco  Assumpção, da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.
 
   Essa é uma preocupação constante na vida da publicitária Flora*, que   tem dois filhos, Cecília* e Celso*, de 7 e 9 anos, respectivamente. As   crianças, que estudam em período integral na escola, têm uma rotina   bastante atribulada. Celso faz aula de inglês, futebol, tênis e deve   começar a aprender uma luta neste ano. Cecília também faz inglês,   natação e deve começar a praticar ginástica olímpica. "Primeiro,   experimentamos uma aula de inglês uma vez por semana, depois colocamos   os dois em um esporte", afirma. "Tem que sentir muito como a criança   está lidando com isso. Observar o comportamento para ver se ela está   cansada e se o rendimento na escola começa a diminuir", diz. Flora se   preocupou em contratar uma professora de inglês para que as crianças   tivessem aulas em casa. Para ela, é melhor opção para evitar o stress   desnecessário no trânsito.
 
   Apesar da preocupação, Flora fez alterações na rotina de Cecília. A   pequena começou a apresentar sinais de stress. Para descobrir o   problema, Flora foi investigar com a filha e percebeu que a natação   estava causando o problema. "Ela chorava muito e quando acordava dizia   que não queria ir para a escola. Estava diferente do que ela é   normalmente", disse. Flora tirou a filha da natação no ano passado, mas   ela já pediu para voltar esse ano, segundo a mãe, que vai observar o   desempenho da criança.
 
      
 
     
   
Quando é depressão – De  acordo com Ivete Gattás, da  Unifesp, a depressão afeta 2% das crianças  e até 5% dos adolescentes.  Sabe-se ainda que a depressão na infância e  na adolescência pode  influenciar negativamente o desenvolvimento e o  desempenho escolar, além  de aumentar o risco de abuso de substâncias  químicas e de suicídio. Somente 50% dos adolescentes com depressão  recebem o diagnóstico antes  de se tornarem adultos. Gattás explica que o  transtorno depressivo pode  surgir a partir de vários fatores:  predisposição genética e associação  de fatores ambientais, que podem  ser desencadeados pelo stress do dia a  dia, sensação de  vulnerabilidade, restrição ao desempenho da criança e  sobrecarrega de  atividades. (
Veja a lista de sintomas). "Para caracterizar depressão, a criança deve apresentar mais de cinco sintomas, durante um mês", afirma Gattás.
 
 
   
     
   
Terapia — Estudos  já mostraram que a ansiedade durante  a infância, se não contornada,  pode se transformar em depressão durante  a vida adulta. Por isso é  necessário prevenir qualquer sintoma, mesmo  que ele não seja o  suficiente para o diagnóstico da depressão. (
Veja como evitar o stress infantil.)  Carla*, de oito anos, começou a ter problemas aos cinco. Em seus   desenhos, ela sempre aparecia chorando, enquanto suas amigas sorriam.   “Ela é muito preocupada com a imagem que os outros têm dela. Se ela   percebe que não corresponde ao que os outros esperam, ela se chateia   muito”, diz a arquiteta Patrícia*, mãe de Carla.
 
 
   “Tentamos conversar com ela, mas ela não revelava o que estava   acontecendo. Descobri que as crianças na escola faziam um clubinho e que   a Carla era sempre excluída”, diz Patrícia. O problema foi solucionado   com a troca de sala. A pediatra de Carla indicou um especialista em   saúde mental, para prevenir e ajudar a garota a entender a própria   ansiedade. Há três anos, ela faz análise uma vez por semana. “Às vezes,   ela me pergunta o que eu acho sobre determinado assunto e eu fico em   dúvida sobre o que responder. E ela diz: ‘já sei, vou levar isso pra   analista’”, conta a mãe.
 
   Para Gattás, o pediatra deve ser treinado na área de saúde mental para   diagnosticar problemas da infância e adolescência. “Ele acompanha a   criança durante o crescimento e tem uma importância fundamental na   orientação dos pais”, diz. “Se não houver uma mudança na forma como os   pais lidam com seus filhos, vamos ver um aumento da frequência dos   quadros psiquiátricos, mas transtornos de ansiedade e falta de   perspectivas para as novas gerações”, diz Assumpção.
*Os nomes das mães e  das crianças utilizados nesta  reportagem foram trocados com o objetivo  de preservar a privacidade dos  personagens