Do O Globo:
Meninos são aliciados para virar transexuais em SP
Magra,  cabelos compridos, short curto. M., 16 anos, abre o sorriso leve e   ingênuo dos adolescentes quando perguntada se pode dar entrevista.   Poderia ser uma das milhares de meninas que sonham com as passarelas.   Mas não é. O relógio marca 1h de sexta-feira. M. é um garoto e está na   calçada, numa das travessas da Avenida Indianópolis, conhecido ponto de   prostituição de travestis e transexuais, escancarado em meio a casas de   alto padrão do Planalto Paulista, na Zona Sul de São Paulo. A poucos   passos, mais perto da esquina, está K., também de 16 anos.
— Sou muito feminina. Não tem  como não ser mulher 24 horas por dia — diz K. M.  e K. são a ponta do  novelo que transformou São Paulo num centro de  tráfico de adolescentes  nos últimos cinco anos. Meninos  a partir de 14  anos são aliciados no Ceará, no Rio Grande do Norte e  no Piauí e, aos  poucos, são transformados em mulheres para se  prostituírem nas ruas de  São Paulo e em países da Europa.  Misturados a travestis maiores de  idade, eles são distribuídos em três  pontos tradicionais de prostituição  transexual em São Paulo: além da  Indianópolis, são encaminhados para a  região da Avenida Cruzeiro do  Sul, na Zona Norte, e Avenida Industrial,  em Santo André, no ABC  paulista.
O primeiro contato é feito por   meio de redes de relacionamento na internet. Uma simples busca por   “casas de cafetina” leva os garotos a perfis de aliciadores, que são   homens, mulheres e travestis. Após o primeiro contato, pedem que o   adolescente encaminhe uma foto por e-mail, para que seja avaliado. Se   for considerado interessante e “feminino”, eles têm a passagem paga   pelos aliciadores. Ao chegar a São Paulo, passam a morar em repúblicas   de transexuais e a serem transformados. Recebem inicialmente megahair e   hormônios femininos. Quando começam a faturar mais com os programas nas   ruas, vem a oferta de prótese de silicone nos seios. Os escolhidos  para  ir à Europa chegam a ser “transformados” em tempo recorde, apenas  cinco  meses, para não perder a temporada na zona do euro.
É fácil  identificar os  adolescentes recém-chegados. Além do corpo típico da  idade, eles têm  seios pequenos, produzidos por injeção de hormônios, e  megahair.  Testados inicialmente na periferia, os meninos são  distribuídos nos  pontos de prostituição de acordo com a aparência. Os  considerados mais  bonitos recebem investimento mais alto e vão trabalhar  na área nobre da  cidade. Na Avenida Indianópolis, recebem R$ 70 por um  programa no  drive in e R$ 100 se o programa for em motel. Nos outros  dois  endereços, o valor é bem mais baixo: entre R$ 30 e R$ 50 no drive  in e  R$ 70 a R$ 80 em motel.
Não  faltam interessados. A  partir de 17h, homens na faixa de 30 a 50 anos  aproveitam o fim do  expediente para, antes de seguir para casa, fazer  programas rápidos com  os transexuais na Indianópolis. Um furgão preto,  com insulfilme, faz o  transporte de vários transexuais. Mas, nesse  horário de maior  movimento, dificilmente os menores ficam à vista nas  calçadas. Por  existirem há décadas, os pontos de prostituição de  travestis são vistos  com naturalidade pelos moradores de São Paulo.  Afinal, se prostituir  não é crime. Por isso, a rede criminosa se mistura  aos transexuais mais  antigos. Assim como eles recebem a proteção da  Polícia Militar para  não serem agredidos por grupos homofóbicos, os  novos fios do novelo se  entrelaçam, dando à rede de tráfico  internacional de adolescentes o  mesmo aparato de segurança e legalidade  que é dado aos transexuais  ditos “independentes”.
Em geral, os  transexuais  adolescentes ficam nas travessas, atrás dos grupos de  maiores de idade,  que ficam quase nus e são extremamente expansivos.  Pacíficos, os dois  grupos convivem bem com a vizinhança, exceto pelo  constrangimento  proporcionado pelos mais velhos (acima de 25 anos) sem  roupa ou  exibindo partes íntimas ou siliconadas. Os adolescentes  são mais  discretos, menos siliconados e “montados”. A aparência de  menina é mais  natural. Os implantes de silicone nos seios são menores,  num apelo  direcionado aos pedófilos. Eles usam saias e shorts curtinhos,  como M. e  K., e podem ser facilmente confundidos com meninas.
Como  na Indianópolis  prostitutas e travestis dividem espaço, clientes são  surpreendidos pela  nova leva de jovens vindos de outros estados, de  aparência cada vez  menos óbvia. Y., 19 anos, é um dos transexuais  que fazem aumentar a  confusão. Aos 15, foi levado a São Paulo pela rede  de prostituição e  pedofilia. — A cafetina viu que eu era feminina e  que ganharia muito  dinheiro. Minha mãe assinou autorização para eu  viajar, e vim de avião.  Ficou preocupada, como toda mãe, mas deixou —  conta. Inicialmente, foi  levado a trabalhar na Avenida Industrial,  em Santo André, no ABC  paulista. Pagava R$ 20 pela diária na república,  sem almoço.
— Quem não tivesse os R$ 20  tinha de voltar para a rua, não entrava enquanto não conseguisse — diz  ele. Mesmo  sem ter sido transformada, já chamava atenção. Logo começou a  faturar  R$ 250 por dia. Aos 16 anos, recebeu “financiamento” para  colocar  prótese de silicone no seio. O implante foi feito por cirurgião   plástico. Custou R$ 4 mil, mas Y. teve de pagar R$ 8 mil à cafetina,   pois não tinha dinheiro para quitar à vista. Y. diz que aceitou  porque  queria ficar feminina logo. Neste mercado, os seios são vistos  como  principal atributo. Quanto mais aparência de mulher, mais os  clientes  pagam. Agora, a jovem mora sozinha num flat e paga seu aluguel.  Diz que  divide o espaço da avenida tranquilamente e já não deve nada a   ninguém. Faz entre seis e 10 programas por noite, afirma, enquanto lança   olhares às dezenas de carros que passam rente à calçada, não se sabe  se  por curiosidade ou atração fatal.

 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário