terça-feira, 10 de novembro de 2015

NÃO DEIXE DE LER ESTA MATÉRIA, DEVEMOS SEMPRE OUVIR E INTERPRETAR A VOZ DE NOSSAS CRIANÇAS, ELAS PRECISAM SEREM OUVIDAS E COM MUITA ATENÇÃO!

Joanna Maranhão fala abertamente ao Bolsa sobre abusos: "Era um heroi para mim"


A piscina é quase o habitat natural de Joanna Maranhão. Foi dentro dela que viveu seus momentos mais felizes e também os mais traumáticos: a alegria das inúmeras medalhas defendendo o Brasil contrasta com as péssimas memórias que guarda da infância, época em que sofreu abusos sexuais. O agressor, treinador que inspirava a menina ainda no início de sua trajetória na natação, deixou marcas profundas na vida e na carreira de Joanna. Em entrevista ao Bolsa de Mulher, Joanna fala abertamente sobre esse momento delicado de sua vida.
Entrada do abusador na vida de Joanna
O primeiro contato com a natação foi aos três anos de idade. As aulas no Clube Português, em Recife (PE), terra de Joanna, sempre foram divertidas para ela e fizeram parte de toda a infância. O processo foi natural: começou a participar de campeonatos infantis, mostrar um ótimo desempenho e passou a ganhar títulos e gosto pela vida de atleta. No meio desse processo, quando já tinha oito anos, um novo técnico entrou para o quadro de professores do clube. E foi ele que mudou totalmente sua vida.

Fotos de Joanna na infância, quando se dedicava à natação e teve o primeiro contato com o treinador
Como o desempenho de Joanna na piscina melhorou muito com os treinos, a família da nadadora passou a confiar muito no trabalho do treinador. “Nossas famílias eram muito próximas, convivíamos muito, viajamos juntos para praia ou campo, eu dormia na casa dele, os filhos dele na minha, meus pais confiavam muito nele. Eu evoluí na natação através do trabalho dele no primeiro ano, isso fez com que meus pais confiassem ainda mais. E eu achava que ele era como um herói para mim, ele me tratava como a estrela da equipe e uma menina prodígio, eu confiava muito nele”, lembra.
Como aconteceram os abusos
Depois de um ano de parceria, aos nove anos de idade, Joanna começou a viver o pesadelo. “Foi numa manhã em que só estávamos eu e ele na piscina. Eu voltava para casa com ele de ônibus, ele não dirigia, então quando terminava o treino, eu tinha que esperá-lo para ir para casa. E foi assim que começou”. E esses abusos foram frequentes, durante todo o segundo semestre de 1996.
Nesse período, ele passou a levá-la até a casa em que vivia com esposa e filhos, sempre após os treinos, para que ficasse mais fácil para ela ir até a escola no período da tarde. E as manhãs passaram a ser assim: enquanto a mulher do treinador dava aulas e os filhos deles estudavam, Joanna sofria com abusos sexuais na casa daquele que, até então, era seu espelho e inspiração de vida.
Inocência perdida

“Eu sabia que aquilo não era correto, mas não sabia do que se tratava e não sabia como agir, a quem pedir socorro. Eu ia dizer o que, se eu não sabia o que estava acontecendo?”. O relato de Joanna é semelhante ao de muitas vítimas de violência sexual na infância. A inocência e fragilidade das crianças são usadas comumente pelos abusadores para praticar as agressões. E elas, muitas vezes, vêm acompanhadas de promessas, que fazem as crianças manterem o silêncio. “Ele pedia que eu sorrisse, falava que já estava acabando e pedia pra que não contasse a ninguém. Ele nunca me ameaçou, acredito que ele tinha um poder sobre mim e sabia que eu não iria contar”.
Mas esses abusos refletiram nas atitudes da nadadora. Joanna pediu à mãe para mudar de turno na escola (já que ela estudava à tarde e os abusos sempre aconteciam pela manhã, depois da natação, quando a casa do treinador estava vazia). A ideia dela era treinar em um grupo maior de alunos, para não ficar a sós com o treinador. Além disso, saindo do treino à tarde, os pais poderiam pegá-la na saída, evitando que fosse preciso ir até a casa do abusador. A tentativa não deu muito certo, a mãe não entendeu o motivo. O resultado foi que, apesar de continuar no mesmo turno, Joanna passou a frequentar os treinos da tarde, como queria. Dessa forma, ficava a manhã em casa, estudava à tarde e saía do colégio antes do fim das últimas aulas para ir ao treino. Isso fez com que o sofrimento da nadadora, finalmente, tivesse fim.
“Tomei essa decisão de não treinar pela manhã e a partir daí os abusos pararam, ele não conseguia mais ficar a sós comigo. Esperei passar o principal campeonato do ano e pedi pra mudar de clube. Minha mãe não entendeu, mas eu disse que era porque eu estava nadando mal e, realmente, após os abusos eu dei uma piorada nos tempos. Então, na cabeça dela, aquilo fez sentido, e eu saí do clube em que ele estava”, conta, ao recordar um episódio posterior a esse acontecimento. “Teve um dia em que eu não queria dormir na casa dele e minha mãe insistiu, disse que eu estava sendo mal educada. Eu fui à contra gosto e quando vi ele se aproximando do quarto comecei a gritar, disse que queria ir embora e voltar para casa. A mulher dele não entendeu nada. Meus pais foram me buscar e nunca mais voltei ali”.
Contar sobre os abusos: uma missão bastante difícil
Quando se deu conta do que estava vivendo, Joanna sondou algumas amigas que treinavam junto com ela para saber se isso acontecia com outras meninas. Porém, a reação com estranheza por parte das companheiras de piscina fez com que ela recuasse e continuasse calada. Aos poucos, tentou contar para alguns familiares. Mas, como acontece em muitos casos de abuso infantil, eles não conseguiram acreditar no relato. 

“Foi absurdamente difícil. Contei em partes para minha tia avó (que já faleceu), também tentei contar pra minha mãe. Disse algo como: ‘acho que ele tentou me beijar’. Mas maínha logo disse: ‘é carinho de pai, você confundiu, ele gosta muito de você’. E aí eu preferi não tocar mais no assunto”. A tia avó chegou a desconfiar, mas a mãe de Joanna não quis acreditar que fosse verdade.  “Acho que como éramos muito próximos, realmente acharam que eu confundi um carinho, porque eu não conseguia dizer: ‘ele colocou a mão no meu maiô’”.
Guardando aquela história a sete chaves, a nadadora passou a se sentir culpada. Pensava no que teria feito para provocar aquelas atitudes por parte do treinador. Além disso, sentia nojo de si mesma. Segundo ela, essas foram as piores sensações que teve desde que tudo aconteceu.
Consequências emocionais
Na adolescência, essas memórias passaram a incomodar mais Joanna. Ela passou a sofrer com depressão, síndrome do pânico, desenvolveu fobia de escuro e gagueira (até hoje trava algumas palavras quando fica mais nervosa). Os reflexos também chegaram à vida sexual, fazendo com que ela tivesse verdadeiro pânico de algumas práticas, como o sexo oral – problema superado após um tempo de relação estável com parceiros compreensíveis, que ajudaram a fazê-la se sentir mais à vontade para se envolver sexualmente.
Joanna tentou suicídio duas vezes. A primeira, em 2006, ela entende que tem total ligação com tudo o que viveu. “Eu estava no auge da terapia, indo à fundo nas emoções e achei que não fosse aguentar”. Já a segunda tentativa aconteceu em 2013, por problemas financeiros. “Acredito que eu nunca teria tido de fato coragem de acabar com minha própria vida. Eu queria fugir daquela sensação e tomar remédio pareceu a solução. É idiota, eu sei, mas eu me perdoo por isso, o que é o mais importante”.
Carreira de altos e baixos

Joanna foi um grande destaque nas piscinas, mas caiu de rendimento devido aos problemas emocionais
Ao longo da carreira, a pernambucana ganhou espaço e se destacou com ótimos resultados dentro da piscina, se tornando uma das principais nadadoras brasileiras de todos os tempos. Mas também sofreu com quedas de rendimento e momentos bastante conturbados, que se misturam com os problemas emocionais enfrentados por ela.
Brilhou aos olhos do grande público aos 16 anos, nos Jogos de Santo Domingo, em 2003. E todo o Brasil passou a torcer pelo futuro da nadadora após Joanna chegar à final nas Olimpíadas de Atenas em 2004, quando conquistou a melhor posição de uma atleta brasileira na competição. Os momentos difíceis vieram logo depois disso, com desclassificações e seguidas baixas em disputas importantes. Foi em 2008, quando questionada sobre essa queda, que Joanna revelou publicamente sofrer com problemas emocionais graças aos abusos sofridos na infância.
Ainda teve algumas conquistas marcantes, mas anunciou aposentadoria em janeiro de 2014. Joanna abandonou as piscinas para se dedicar a outros projetos, como a ONG Infância Livre, que criou para combater a pedofilia (leia mais abaixo). Durante esse período passou por grandes dificuldades financeiras e decidiu retornar às piscinas, anúncio feito em dezembro do mesmo ano. Agora, em 2015, aos 28 anos, voltou com força total às piscinas e já se destacou no Pan de Toronto, onde foi medalha de prata.
Divulgação do caso e Lei Joanna Maranhão
Após falar abertamente sobre o que sofreu, o caso ganhou grande repercussão. Joanna não esperava. “Eu nunca quis denunciar ele, eu só me senti a vontade de falar sobre o assunto porque me perguntavam sobre minha queda de rendimento, minha mudança ao longo dos anos e eu quis contar o processo que passei, jamais imaginei que fosse tomar essa proporção”.

Joanna não esperava tamanha repercussão de seu caso, mas não teve medo de falar
O treinador acusado por Joanna decidiu processar a nadadora e a mãe dela por difamação e calúnia, o que deu início a um grande debate sobre o caso. Na época, em treinamento fora do país, Joanna escreveu uma carta para ser lida em juízo. Nela, escrevia reafirmando tudo o que sofreu.
Trechos da carta: “Quero dizer que o fato de ele ter me despido na cama da própria esposa e ter me bolinado enquanto eu chorava e pedia para parar ainda é um fato que me enoja e me dói, mas isso não me derrotou". "Sou dependente de antidepressivo e apesar de tudo isso estou aqui hoje, mesmo que por meio de palavras, pronta para lutar por justiça. Porque, se o medo e a vergonha me calaram durante 12 anos, não me calam mais", "Nenhuma criança, aliás, nenhum ser humano merece ser tocado daquela forma. Pedofilia é uma doença e é triste que um homem não tenha tido a capacidade de se controlar diante de uma criança", "Eu confiava naquele homem, creditava minha evolução no esporte a ele e quando comecei a ser tocada achava que a culpa era minha, achava que eu tinha feito algo errado, que estava pecando, quando na verdade eu era a vítima", "Só peço que, pelo amor de Deus, a Justiça não deixe esse homem encostar em mais nenhuma criança".
E foi assim que Joanna se tornou réu. “Parece irônico, mas foi assim que a história da lei começou”, comenta a nadadora, se referindo à Lei 12.650, de 2012, que provocou mudanças no que diz o código penal brasileiro sobre pedofilia, e ganhou o nome de Joanna Maranhão em homenagem à atleta.
O que diz a Lei Joanna Maranhão
Quando o caso veio a público, Joanna estava com 21 anos e o caso já havia prescrito. Mesmo ela tendo como provas a palavra do psiquiatra que a tratava e os depoimentos de mais duas meninas de quem ele também teria abusado, nada podia ser feito contra o agressor. E foi a Lei 12.650 que provocou mudanças para ser possível denunciar caso de abuso na infância depois de adulto.
A partir dessa determinação, o prazo para a denúncia é maior e poderá ser contado a partir da maioridade da vítima. Ou seja: só depois que a pessoa completar 18 anos começará a contar o prazo para que o crime prescreva – tempo que varia de acordo com o tipo de crime cometido.
Superação do trauma
Para se livrar da dor dessas lembranças, Joanna buscou tratamento. Fez diferentes tipos de terapia, pulando de médicos em médicos até encontrar o que mais lhe agradava. Frequentou psiquiatra e toma remédio controlado até hoje. Além disso, atribui a superação do trauma também às aulas de ioga que faz todas as manhãs, à própria natação e também ao espiritismo.
“Foram alguns passos, fui evoluindo, verbalizando, superando, me reconhecendo através disso, e hoje estou apta e pronta pra ajudar pessoas que estão se encontrando também, isso me ajuda muito, traz sentido ao que passei”.
ONG Infância Livre

Ajudar outras pessoas que passaram pelo que Joanna passou é o objetivo dela com aONG Infância Livre, que criou em 2014. Através do projeto, a nadadora oferece tratamento emergencial a crianças e pais que procuram a ONG, dando apoio jurídico, médico e psicológico. Além disso, aulas de educação sexual fazem parte do trabalho, sendo dadas a crianças e profissionais que trabalhem com crianças, um dos pontos mais defendidos por Joanna. “Educação sexual para crianças é a solução e fiscalização dos profissionais que trabalham com crianças em todas as áreas”.
Como conselho às vítimas, Joanna recomenda não esconder o trauma e procurar por ajuda. “Falem, verbalizem, vocês não são as únicas vítimas, nunca são, procurem ajuda e não se calem. Falar é uma forma de vomitar e começar uma limpeza interna”.
Ficou no passado
O trauma não tem cura, mas ficou no passado. “Não existe cura porque não se trata de uma doença, o doente é o agressor. O que enxergo e sinto é que domino as consequências e encontrei o equilíbrio pra viver além do ocorrido”, comemora.
E é assim que Joanna espera viver daqui para frente para continuar sendo um espelho para vitimas de abuso sexual na infância: vivendo, sendo feliz e plena, mostrando que existe vida através e apesar dos traumas.
“Eu faria tudo novamente, porque hoje, sou eu quem comanda minha vida, o abuso é um fator na minha vida, um fato pesado, mas é um fato isolado, ele não comanda o meu futuro, e se eu não tivesse trilhado o caminho que trilhei, estaria até hoje refém desse passado”.

"Hoje sou eu quem comanda minha vida", comemora Joanna após superar o trauma do

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